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Fonte: BBC/Brasil
Cinco anos depois dos protestos que pararam o Brasil, muitas das pautas que levaram milhares de pessoas às ruas ainda não foram atendidas.
Inicialmente uma série de manifestações contra o aumento das tarifas do transporte público, a mobilização foi adquirindo uma pauta diversa conforme foi ganhando corpo. E revelou uma insatisfação com a classe política que não arrefeceria – pelo contrário, evoluiria até se tornar personagem central das eleições presidenciais deste ano.
Há quem considere junho de 2013 um mês que não terminou, e que dialoga diretamente com a crise econômica e política vivida hoje pelo país, além de ter dado vazão aos anseios de uma população que continua querendo serviços públicos melhores e o fim da corrupção.
Mas afinal, dentre os principais itens da difusa lista de desejos dos manifestantes, quais foram atendidos? E quais acabaram deixados para trás?
Tarifa do transporte público
No dia 6 de junho de 2013, o MPL (Movimento Passe Livre) se mobilizava contra o aumento das tarifas de ônibus, metrô e trens em São Paulo, repetindo manifestações que já haviam sido bem-sucedidas em cidades como Florianópolis e Salvador. No dia seguinte, voltaram às ruas.
Fizeram ainda outros dois atos cada vez maiores. No dia 11 de junho, ônibus e agências bancárias foram depredadas por personagens novos, os black blocs. No dia 13, houve enfrentamento, e a Polícia Militar disparou bombas de gás e balas de borracha, deixando manifestantes e jornalistas feridos.
A revolta com a reação policial deu o fôlego que os protestos precisavam para ganhar o país, ao mesmo tempo em que levou à pulverização das reivindicações. “Não é pelos 20 centavos”, diziam os cartazes em referência ao valor do aumento da passagem em São Paulo, que à época subiria para R$ 3,20.
A reivindicação que deu origem a todo o processo inicialmente surtiu efeito, lembra o professor Cesar Jimenez-Martinez, da Universidade Brunel, na Inglaterra, que transformou as jornadas de junho de 2013, o papel da mídia e o impacto para a imagem do Brasil em tese de doutorado pela universidade britânica London School of Economics (LSE).
Rio de Janeiro e São Paulo, já no dia 19 de junho, foram as primeiras cidades a congelar o preço das passagens.
Um aumento ainda superior, porém, ocorreria no início do ano seguinte em São Paulo, quando passou a custar R$ 3,50. Em 2015, pularia para R$ 3,80 e, no inicio deste ano, para R$ 4.
Manifestações posteriores contra os reajustes jamais conseguiram repetir a adesão de 2013. Sofia Salles, militante do MPL, pondera, contudo, que a inclusão, em 2015, do transporte como direito social na Constituição e a criação do passe livre para estudantes em São Paulo durante a gestão de Fernando Haddad – benefício extinto por seu sucessor, João Dória – foram resultado da luta em 2013.
O então congelamento das tarifas em 2013 não foi, porém, suficiente para dar fim aos os protestos, que naquele momento já tinham ganhado outras motivações.
Poucos dias antes, milhares haviam passado a não apenas a apoiar o MPL, mas também foram às ruas em centenas de cidades.
O marco inicial das megamanifestações no país inteiro foi o dia do pontapé inicial do torneio internacional de futebol Copa das Confederações, no dia 15 de junho – uma espécie de aquecimento para a Copa do Mundo, que ocorreria no ano posterior e já enfrentava grande oposição de parte da população.
Dois dias depois, manifestantes subiram no telhado do Congresso Nacional, em Brasília, no que se transformaria em um dos momentos mais icônicos desta década. Além disso, transformaram locais como a Praça da Estação, em Belo Horizonte, e a avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, em um mar de gente.
Investimentos na saúde
“Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil”, diziam cartazes que podiam ser avistados em diferentes cidades.
Não foram poucas as comparações entre os investimentos então sendo feitos em estádios para a Copa com a situação da saúde do país.
Pressionados, o governo Dilma Rousseff e o Congresso tentaram responder às demandas.
A presidente fez um pronunciamento na TV prometendo e trazer mais médicos do exterior para melhorar o Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente no interior do país. O resultado foi o programa “Mais Médicos”, que teve como resultado a atração de profissionais cubanos ao Brasil, gerando críticas da classe médica.
Meses depois, o Congresso aprovaria e a petista sancionaria um projeto de lei destinando percentuais do pré-sal para a saúde e a educação.
No fim de 2016, diante da grave crise econômica, o governo Michel Temer anunciou a criação de um teto de gastos para o governo federal, o que para muitos acabou limitando o avanço do investimento nessas áreas.
E mais recentemente, retirou alguns recursos dessas pastas para atender à reivindicação do caminhoneiros por diesel mais barato na recente greve que parou o país.
Combate à corrupção
À época, Dilma também fez uma reunião emergencial com governadores e prefeitos e propôs cinco pactos (pela saúde, educação, transporte, reforma política e responsabilidade fiscal), além de um plebiscito para uma constituinte da reforma política, bandeira defendida pelo PT. Esses, no entanto, nunca foram adiante.
Além dos pedidos por mais saúde, educação e segurança, tinha gente contra a Copa, contra a Olimpíada do Rio – que acabou transcorrendo normalmente, apesar de protestos às vezes violentos -, e contra a PEC 37, que limitava o poder de investigação do Ministério Público.
Mas muitos foram protestar sobretudo contra a corrupção. “Junho foi uma catarse coletiva muitidimensional com muitos setores, com muitas pautas. Tem um claro conteúdo de frustração com o ambiente politico, de raiva”, observa a cientista política Esther Solano, professora da Unifesp, autora de diversos artigos sobre os protestos que marcaram o Brasil.
Como resposta do Congresso, deputados e senadores fizeram uma lista de projetos que estavam parados ou tramitavam lentamente nas duas Casas. Alguns acabaram avançando e outros foram derrubados.
Foi aprovada, por exemplo, a Lei Anticorrupção, que pune empresas e permite acordos de leniência em casos de crimes contra a administração pública. Também passou uma proposta que define o que é organização criminosa e estabelece regras para acordos de delação premiada – usados em larga escala a partir de 2014 na operação Lava Jato.
A PEC 37, por sua vez, não foi aprovada, como queriam os manifestantes, e membros do Ministério Público mantiveram a prerrogativa de conduzir investigações.
Câmara e o Senado aprovaram ainda o fim do voto secreto em caso de cassação de mandato de parlamentar.
Outros projetos que ficando para trás no Congresso, como o que transforma corrupção em crime hediondo e o que acaba com o foro privilegiado – que só seria alterado neste ano, mas pelo Supremo Tribunal Federal (STF); A corte determinou que apenas crimes cometidos no mandato seria julgados diretamente por ela.
A reforma política pedida também acabou não implementada. Para Solano, ainda é preciso mais pressão popular para forçar uma mudança desse quilate.
“Obviamente, uma reforma tão potente, de reestruturação do sistema que tire privilégios de uma casta política, não vai vir de cima. As camadas politicas elitizadas que se beneficiam desse sistema não vão querer autoimplodir o sistema”, avalia Esther Solano.
Projeto de lei ‘cura gay’
Assunto em voga à época, o projeto batizado de “cura gay”, defendido pela bancada evangélica, previa permitir tratamento psicológico para paciente com “transtorno de orientação sexual”, o que é proibido, era alvo frequente das manifestações.
A proposta foi arquivada pelo então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (MDB-RN), mas voltou a ser apresentada em 2016 e ainda hoje tramita na Casa.
O Congresso que acabou eleito em 2014 se mostrou ainda mais conservador. A bancada BBB – sigla para boi, bíblia e bala, englobando parlamentares ruralistas, religiosos e defensores de mais severidade na condução da segurança pública – é, hoje, uma força dentro das Casas.
As heranças de 2013
Para o historiador Lincoln Secco, professor da USP, “junho de 2013 foi uma ruptura na história do Brasil”.
Iniciado pelo que o professor chama de “esquerda autônoma”, as manifestações atraíram também representantes da direita.
Os professores Solano e Jimenez-Martinez, por sua vez, salientam que junho de 2013 foi marcado pela ausência de lideranças oficiais e de pauta especifica de reivindicação, o que dificultou a negociação com o setor público.
“Antigamente tínhamos só uma estratégia de protesto, que era o típico protesto verticalizado, organizado com uma pauta definida. Era muito mais fácil negociar com esses grupos, que tinha liderança, pauta definida, uma agenda definida. Agora você tem uma multiplicidade de formas de protestos, além dos tradicionais, há os mais contemporâneos, espontâneos, sem liderança definida, mais fluidos e heterogêneos”, diz a professora.
Os pesquisadores destacam como herança, porém, o importante papel que as redes sociais assumiriam para a organização de atos e também como plataforma para novos “porta-vozes” de demandas difusas.
Nesse quesito, no entanto, Brasil não inovou. Essa era também a marca de manifestações contemporâneas, como a Primavera Árabe, que eclodiu em 2011, e do movimento Occupy, que atraiu multidões em Nova York e em Londres no mesmo ano.
E esse modelo horizontalizado e apartidário se repetiu outras vezes como, por exemplo, com a ocupação em escolas por estudantes secundaristas em São Paulo em 2015 e com a greve dos caminhoneiros neste ano.
Polarização
Cinco anos depois dos megaprotestos, o Brasil se vê extremamente polarizado entre direita e esquerda.
Solano diz que, depois de junho, nem todas as pautas foram atingidas, “mas o Brasil começou a ver pessoas falando mais sobre política”.
O país também passou a assistir a grupos indo às ruas pedindo abertamente intervenção militar e defendendo pautas mais conservadoras.
Segundo a professora, “a política está na pauta, no centro do debate, só que muito mais canalizado pela direita”. “Parece que os grupos de direita capturaram muito mais esse descontentamento”, avalia.
Para o historiador Lincoln Secco, da USP, as Jornadas de Junho se estenderam nos anos seguintes, em especial com protestos como os contra a Copa, as manifestações de 2015 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. “(Esses eventos) foram uma continuidade de junho”, opina.
O professor afirma que a direita capturou o movimento ainda em 2013. “Junho começou como um protesto de esquerda, anti-institucional e com uma pauta definida (as tarifas de transporte). A leitura da mídia e uma insatisfação da classe média com o PT transformaram junho em um movimento de direita com uma pauta imprecisa: a crítica generalizada dos governos e dos serviços públicos”, complementa.
Novos movimentos
A partir de 2013, grupos como o Movimento Brasil Livre, Vem para Rua e Revoltados On Line ganharam visibilidade por convocar, por meio das redes sociais, manifestações em diferentes cidades. E, em 2015, esses mesmos grupos participaram da organização de novas manifestações, dessa vez pelo impeachment de Dilma Rousseff, contra o PT e a favor da Lava Jato. A esse grupo se juntaram também os que pedem intervenção militar.
Mas a socióloga e historiadora Regina Helena Alves da Silva, coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), observa que esses grupos e, principalmente, o que pensam e querem não apareceram em 2013.
“Em 2010 fizemos uma grande pesquisa sobre as eleições, e lá estavam os grupos que depois se organizaram como Vem pra Rua, Revoltados, etc. Em certa medida, a direita se organiza em rede e online há bastante tempo, existe uma infinidade de grupos e debates nessa direção que passam a produzir conteúdos para a distribuição em todo o país”, observa Regina Helena, citando que esse material tem conteúdo conservador e até moralista.
Ela diverge do colega da USP em relação à “captura” pela direita das Jornadas de Junho.
“2015 constrói a narrativa de que 2013 foi um movimento da direita, e claramente não foi. Podemos até verificar essa hipótese olhando pra multiplicidade de cartazes nas ruas, pedindo reforma política, fim da Polícia Militar, transporte, justiça social, moradia, jornada de trabalho, igualdade para mulheres e LGBTs, passe livre e Tarifa Zero, e questionando atos dos políticos”, afirma a professora, que organizou o livro Ruas e Redes: Dinâmicas dos ProtestosBR.
Por sua vez, o Mídia Ninja, que se projetou ao cobrir os protestos de 2013 ao vivo e está no campo mais à esquerda do espectro político, continuou registrando manifestações e cenas de violência policial.
O Movimento Passe Livre, que iniciou os protestos, chegou a ter seu fim anunciado por um dos integrantes, mas voltou a funcionar.
“O MPL mudou muito. A gente costuma dizer que ele se reconstruiu por causa das mulheres. É um movimento em sua maioria feminino”, diz Sofia Salles, integrante do grupo que foi às ruas, à época, com apenas 16 anos. Hoje, diz ela, o MPL prioriza a questão do transporte na periferia.
E novos movimentos, alguns deles reunindo pessoas de diferentes correntes e partidos, como o Agora! e o Livres, também foram criados.
Um novo junho?
Segundo os professores Solano e Jimenez-Martinez, o que difere 2013 do momento atual é que hoje há uma deterioração da economia e da política, cenário bastante distinto do que o país se encontrava naquela época, quando havia bastante otimismo, em especial do resto do mundo, em relação ao Brasil.
“A gente não pode pensar que o que está acontecendo agora (com recente a greve dos caminhoneiros) é 2013 outra vez porque a situação é muito diferente, o contexto é muito diferente”, observa Jimenez-Martinez, lembrando que a popularidade da então presidente Dilma Rousseff estava em alta havia cinco anos. Naquela época, ainda havia estabilidade política, e eram poucos os indicativos de que uma tormenta econômica estava a caminho.
A greve dos caminhoneiros, diferentemente de junho de 2013, já começou com uma pauta dispersa e abstrata, na qual os aumentos consecutivos do preço do combustível são vistos como resultado da corrupção e da tributação exagerada, avalia Secco.
Apesar de acharem que, a partir da greve, há a possibilidade de uma escalada dos protestos no país por meio de setores específicos ou categorias profissionais, os professores não veem um novo 2013 no horizonte próximo.
“Não acho que os caminhoneiros podem detonar um ‘novo 2013’, primeiro porque são fruto de formatos de mobilização e ação muito antigos e conservadores, são dispersos em demandas e se mostraram claramente influenciados pelos donos de empresas da área”, avalia Regina Helena.
Esther Solano, por sua vez, acredita que as manifestações, com a proximidade do pleito, tendem a se partidarizar.
“Não acho que a gente consiga ter um novo junho. Foi uma congregação de muitas pautas e muitos grupos. Mas vai ser obviamente um clima de maiores mobilizações, acho que serão mais partidárias porque teremos as eleições. Vamos assistir a mais manifestações de setores, de categorias profissionais como agora os petroleiros, de setores mais à direita ou à esquerda, mas não acho que teremos um amálgama de muitos grupos indo (juntos) para rua”, diz Solano.
Ela avalia ainda que, desde “o impeachment (de Dilma Rousseff) e da prisão do ex-presidente Lula, é muito difícil encontrar grupos com diferentes perspectivas, tendências, ideologias e preferências, juntos, num mesmo espaço de rua”.
Jimenez-Martinez, por outro lado, é menos categórico. Disse ter aprendido que “no Brasil não é possível prever o imprevisível”.
Mas na visão do professor, o país deixou escapar uma grande oportunidade de se transformar em um líder mundial. A situação de agora, diz, só reforça o desapontamento entre os que um dia sonharam com um futuro promissor para a nação em curto espaço de tempo.
Solano tem uma opinião diferente. “Não exatamente acho que o país perdeu uma oportunidade. Oportunidades de mudanças são algo que a sociedade vai construindo continuamente. A mudança que estava se pedindo é tão estruturante que não poderia ter sido atingida em um curto espaço de tempo.”